Ameaça à
Cidadania: Escolas particulares mobilizam-se contra estudantes com deficiência
(por Paulo Denis Pereira)
Enquanto jornais e emissoras de rádio e televisão requentam a pauta de
tantos fevereiros, alertando os senhores pais sobre o aumento do material
escolar e orientando-os a pechinchar nas papelarias, outro acontecimento de
maior dimensão ronda o ano letivo de 2016: nutridos proprietários de escolas
amotinam-se contra o calouro Estatuto da Pessoa com Deficiência, instituído
pela lei 13.146, que entrou em vigor no último dia seis de janeiro. O ataque ao
Estatuto, que é a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, teve
início em agosto do ano passado, um mês após sua publicação: alegando que a
educação de pessoas com deficiência é responsabilidade exclusiva do Estado, a
Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino ajuizou no Supremo
Tribunal Federal ação direta de inconstitucionalidade contra os artigos 28 e
30.
A Confenen pretende suprimir do Estatuto o parágrafo primeiro do artigo 28,
que proíbe a cobrança por escolas particulares de taxas adicionais para alunos
com deficiência, bem como o artigo 30 que determina a adoção de procedimentos
diferenciados para esses estudantes também em processos seletivos de
instituições privadas de ensino superior e de educação profissional e
tecnológica. Como o ministro Edson Fachin indeferiu a medida cautelar, a
Confederação interpôs em novembro agravo regimental, pedindo a reconsideração
desse despacho e remessa do recurso ao Tribunal Pleno do STF. Para Fachin, o
atendimento do pleito da Confenen para alteração dos artigos 28 e 30 do
Estatuto traria o risco de conceder às escolas particulares o “odioso
privilégio do qual não se podem furtar os demais agentes econômicos.
Privilégio odioso porque oficializa a discriminação.”
A insurreição dos donos de escolas contra o Estatuto da Pessoa com
Deficiência contou com outras escaramuças, como a autuação pelo Procon de uma
escola no Rio de Janeiro em que os pais têm que assinar um contrato de
matrícula declarando que seus filhos não são portadores “de qualquer
necessidade especial” e que estão cientes de que “escola não trabalha com
necessidades especiais”. De acordo com a nota do colunista Ancelmo Góis, do
jornal O Globo, de 11 de novembro, o Procon considerou a cláusula
discriminatória. O Blog da Cidadania denunciou que a Confenen está orientando
as escolas particulares a adotarem contratos de matrícula ilegais, pois
contrariam o Estatuto. De acordo com modelo de contrato divulgado no blog, a
cláusula 1.2 do documento estabelece que a escola “não tem condições materiais
e pessoal próprio para ministrar educação especial”. O parágrafo 1º da cláusula
3 do contrato determina que constitui “responsabilidade adicional dos
contratantes, com pagamento à parte, o custo com atendimento, serviços,
equipamentos, pessoal e material especiais de que o aluno, individualmente, por
condições próprias, necessitar, pago diretamente a terceiros – fornecedores ou
prestadores de serviços”.
O informativo da Confenen de janeiro e fevereiro deste ano informa que a
Federação dos Estabelecimentos de Ensino de Minas Gerais ajuizou habeas corpus
preventivo e coletivo junto ao Tribunal de Justiça “para evitar a prisão
arbitrária de diretor, professores e funcionários, como já aconteceu”. Na
contramão do despacho do STF, em 11 de dezembro em Florianópolis, o juiz
Alcides Vettorazzi, da 2ª Vara da Justiça Federal concedeu liminar em ação
ajuizada pelo Sindicato das Escolas Particulares de Santa Catarina(Sinepe/SC),
permitindo que faculdades particulares possam cobrar valores diferenciados de
estudantes com deficiência.
De forma avessa aos movimentos inclusivos que emergem pelos quatro
cantos do mundo, a ambição e a ignorância parecem constituir este véu
obscurantista que os gestores de escolas privadas lançam sobre as famílias de
pessoas com deficiência. Descobrimos que para eles há duas classes de cidadãos.
No entender de tais gestores, haveria os de primeira classe – nos quais não se
poderia vislumbrar nenhuma ausência ou disfunção de estrutura
psíquica, fisiológica ou anatômica – e os de segunda classe, as pessoas com
deficiência. Esses “inferiores cidadãos” teriam que pagar pesado ágio para
ingressar em escola privada ou teriam que recorrer somente a escolas públicas.
Com insuficiência cognitiva ou visual (já denotando, portanto, alguma
deficiência), esses senhores não compreenderam ou não enxergaram que, bem antes
da vigência do Estatuto, a Constituição Federal, promulgada em 1988, ao
estabelecer em seu artigo 205 os princípios do ensino, elencou em seu primeiro
item a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”.
Desconheceram, também, o artigo 209 da Carta Magna, que aqui
transcrevemos:
“O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:
I–cumprimento das normas gerais da educação nacional;
II–autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.”
“O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:
I–cumprimento das normas gerais da educação nacional;
II–autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.”
Dentre as normas gerais referidas no artigo 209, podemos destacar alguns
princípios definidos para o ensino na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional , de 20 de dezembro de 1996, como “igualdade de condições para o
acesso e permanência na escola” (repete-se aqui o que consta na Constituição),
“liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento,
a arte e o saber”, “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” e
“respeito à liberdade e apreço à tolerância”.
De forma inequivocamente intolerante, em setembro de 2015,
o Sinepe/SC divulgou à comunidade escolar catarinense uma constrangedora e
desastrada carta aberta em que se rebela contra a legislação nacional que
determina a inclusão de alunos com deficiência no sistema regular de ensino. O
Sinepe/SC tentou demonstrar a impossibilidade do ingresso de alunos com
deficiência nas escolas particulares alegando que limitações financeiras,
estruturais, logísticas e de recursos humanos inviabilizariam o adequado
acolhimento desses estudantes. Para o Sindicato, caberia somente ao Estado “o
dever constitucional de atender o portador de necessidades especiais”.
Com exacerbado puritanismo, a carta do Sinepe chegou a sugerir o risco
de que, “em razão da deficiência”, um aluno abra a braguilha e exponha a
genitália ou bata em colegas menores. Alguém pode assegurar que os demais
alunos, não em razão de eventual deficiência, mas movidos por quaisquer
caprichos, não impõem constrangimentos até maiores a colegas ou mesmo que nunca
agrediram um colega ou um professor? Vincular a violência – condição inerente a
todos os seres humanos – aos estudantes com deficiência é, no mínimo, preconceito,
senão má fé.
A choradeira dos patrões escolares, obviamente desacompanhada de
informações sobre os seus lucros, não os eximirá, jamais, da responsabilidade
de aceitar matrícula de qualquer estudante – incluindo-se, é claro, aqueles com
deficiência -, conforme estabelecem a Constituição Federal, o Estatuto da
Pessoa com Deficiência e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Míopes e audazes, os proprietários de escolas nem mesmo parecem temer o
artigo 8º do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que qualifica como crime
punível com multa e reclusão de dois a cinco anos a recusa de inscrição ou a
cobrança de valores adicionais de aluno em qualquer estabelecimento de ensino
em razão de sua deficiência.
As atitudes da Confenen e do Sinepe traduzem infeliz ameaça de genocídio
contra pessoas com deficiência. Pior do que um obstáculo arquitetônico, que
dificulta o acesso, o posicionamento dos representantes das escolas
particulares visa eliminar a possibilidade de matrícula na rede regular de
ensino por estudantes com deficiência – a não ser que suas famílias paguem a
conta sozinhas. Ao impedir o ingresso de alguém à escola, retiram-se violentamente
– tal como o pássaro que arranca o alimento do bico de filhote alheio -, as
suas oportunidades de alcançar autonomia. Da mesma forma, impede-se sua
integração ao ambiente escolar. Reprime-se, desta forma, o direito de conviver,
de ser parte da sociedade, ou, sinteticamente, de existir ou de viver.
Ao entender como razoável a exclusão pela escola do aluno com
deficiência, um descuidado leitor da carta aberta do Sinepe poderia depreender
que se justificariam semelhantes iniquidades em distintos setores e espaços
destinados à coletividade e geridos por entes privados, tais como um táxi, um
veículo de transporte coletivo, um teatro, um estádio de futebol, um
restaurante ou uma clínica médica. Ou é sensato pensar que quem merece, por
necessidade e direito, um tratamento qualificado, por vezes com maior custo,
deve ser taxado em excesso ou alijado do espaço coletivo/público?
Sabe-se que é justamente a escola (privada ou pública) que inclui
portadores de necessidades especiais que exercita um papel educativo elevado e
beneficia-se com as diferenças. É com nossas diferenças que se constrói uma
sociedade mais plural e mais verdadeira.
CAPITALISMO COM RISCOS BANCADOS PELO ESTADO
A educação é um bem precioso que nunca poderá ser negado às pessoas com
deficiência. Como diz a Constituição Federal no artigo 205, “a educação,
direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Perguntamos: os patrões escolares não se consideram integrantes de nossa
sociedade? Portanto, não estariam aptos a colaborar para preparar pessoas para
o exercício da cidadania em nosso país? Lamentavelmente, o seu comportamento,
longe de prezar pela cidadania, assemelha-se aos ideais de eugenia perseguidos
pelo nazismo. Eles buscariam formar redutos de “estudantes puros”, com
minimizadas dificuldades de aprendizagem, clientes perfeitos neste pretendido
capitalismo sem riscos – ou com riscos bancados pelo Estado.
A carta do Sinepe gerou manifestações de repúdio de pais de alunos com
deficiência e de organizações da sociedade civil. A Ordem dos Advogados do
Brasil de Santa Catarina, representantes da Câmara de Vereadores de
Florianópolis, grupos de mães e representantes de associações de pessoas com
deficiência foram ao Ministério Público exigir a retratação do Sinepe/SC. O
Sindicato acabou por retratar-se aoafirmar em nota oficial que se solidariza
com “os que se disseram atingidos no seu juízo crítico e sensibilidade por
eventual excesso da linguagem utilizada”. Justificou-se explicando que buscava
“apenas a apresentação das dificuldades de emprego das normas do Estatuto da
Pessoa com Deficiência”.
Nossos argumentos em favor da inclusão de pessoas com deficiência nas
escolas privadas não excluem, obviamente, a urgente necessidade de as escolas
da esfera pública se adaptarem às exigências do Estatuto, qualificando-se e
apropriando-se de recursos humanos especializados e infraestrutura adequada.
O
Estatuto, em seu artigo 2o, considera
pessoa com deficiência “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza
física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais
barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em
igualdade de condições com as demais pessoas”. A Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, promovida pela ONU em 2006, elenca, entre
os tipos de deficiência, a sensorial, que pode ser visual (cegos ou de baixa
visão) ou auditiva (surdos), a intelectual (síndrome de Down e outros), a
física (paraplégicos, tetraplégicos, amputados etc.) e a múltipla, em que
a pessoa possui mais de uma deficiência, como o surdo-cego, por exemplo.
As pessoas com deficiência poderiam ser denominadas, talvez mais
adequadamente, como pessoas com disfunção funcional ou com desafios especiais,
que precisam superar cotidianamente. A expressão diversidade funcional foi
proposta em 2005 na Espanha pelo Foro de Vida Independente e trilha um viés
inclusivo e não reabilitador ou limitador ao buscar a substituição de termos
pejorativos como deficiência e incapacidade. A psicopedagoga Márcia Barddal,
voluntária da Associação Amigo Down, de São José, SC, considera o termo
diversidade funcional “uma forma mais positiva e mais digna de vermos as
deficiências ou desafios que todos em algum momento temos, como mais uma
diversidade dentre outras tantas de nós, seres humanos”.
Mesmo que alcancemos avanços conceituais e o arcabouço jurídico garanta
plenamente os direitos de pessoas com diversidade funcional, os patrões
escolares, que tentaram buscar guarida junto aos juízes do STF, postam-se à
frente dos portões de suas escolas, mobilizados na defesa de seu despreparo e
de seus lucros. Cremos que somente com pranto e ranger de dentes se construirá
a verdadeira sociedade inclusiva, que tratará com equidade todas as nossas
diferenças.
Fonte:
http://www.sul21.com.br/jornal/ameaca-a-cidadania-escolas-particulares-mobilizam-se-contra-estudantes-com-deficiencia-por-paulo-denis-pereira/
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