Deficiência
Não é Causa de Incapacidade Relativa: a Brecha Autofágica
Artigo de Pablo Stolze Gagliano*
1. Colocação do Problema
Já era
esperada a repercussão em torno do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
A
reconstrução operada em parte essencial do sistema jurídico brasileiro não
poderia ocorrer sem que as ondas da mudança fossem sentidas em toda a sua estrutura.[1]
Pela
amplitude e pelo alcance de suas normas, como já tive oportunidade de
escrever[2], o Estatuto traduziu uma verdadeira conquista social, ao inaugurar
um sistema normativo inclusivo, que homenageia o princípio da dignidade da
pessoa humana em diversos níveis.
A partir de
sua entrada em vigor, a pessoa com deficiência - aquela que tem impedimento de
longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, nos termos
do seu art. 2º - não deve ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz,
na medida em que os arts. 6º e 84, do mesmo diploma, deixam claro que a
deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa.
Ainda que,
para atuar no cenário social, precise se valer de institutos assistenciais e
protetivos como a tomada de decisão apoiada ou a curatela, a pessoa deve ser
tratada, em perspectiva isonômica, como legalmente capaz.
Com efeito,
uma mudança desta magnitude - verdadeira "desconstrução ideológica" -
não se opera sem efeitos colaterais, que exigirão intenso esforço hermenêutico[3].
Mas,
certamente, na perspectiva do princípio da vedação ao retrocesso, lembrando
Canotilho, a melhor solução deve ser alcançada.
Nesse
contexto, preocupa-me uma linha de pensamento que, diante de uma simples falha
cometida pelo legislador, pretende, em um esforço interpretativo acrobático,
extrair uma conclusão que, a par de inconstitucional, afigura-se “autofágica”.
Explicarei a
causa da minha perplexidade nos tópicos seguintes.
2. A Convenção de Nova York
A Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o seu Protocolo
Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, foram ratificados
pelo Congresso Nacional por meio do Decreto
Legislativo no 186, de 9 de julho de 2008 - em conformidade com
o procedimento previsto no § 3o do
art. 5o da Constituição da Republica
Federativa do Brasil -, em vigor para o Brasil, no plano
jurídico externo, desde 31 de agosto de 2008, e promulgados pelo Decreto
no 6.949, de 25 de agosto de 2009,
data de início de sua vigência no plano interno.
Trata-se de
uma Convenção dotada de natureza jurídica diferenciada, na medida em que tem força de Emenda Constitucional.
Pois bem.
Esta
Convenção, em seu artigo 12, item 2, expressamente dispôs:
Artigo 12[4]
Reconhecimento
igual perante a lei
2. Os
Estados Partes reconhecerão que as
pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com
as demais pessoas em todos os aspectos da vida. (grifei)
Friso:
capacidade legal em igualdade de condições.
É de clareza
meridiana, portanto, que a nova concepção da “capacidade”, em uma perspectiva
inclusiva e não-discriminatória, não é fruto do Estatuto da Pessoa com
Deficiência - que atuou apenas em nível legal regulamentar[5] - mas da própria
Convenção - inserida no ordenamento pátrio com matiz de norma constitucional.
Vale dizer,
foi a própria Convenção de Nova York que estabeleceu o novo paradigma da
capacidade, para, nesse novo conceito - rompendo com a antiga dualidade
capacidade de direito x de fato - contemplar todas as pessoas, mesmo aquelas
que, para atuarem, se valham de um instituto assistencial ou protetivo[6].
Por isso, é
fácil perceber que o novo conceito de capacidade fora moldado, não no simples
cadinho da regra civil, mas na poderosa forja da norma constitucional.
Tal aspecto,
inclusive, já havia sido observado pelo grande jurista PAULO LÔBO, quando,
discorrendo sobre o tema, afirmou:
“A Convenção,
nessa matéria, já tinha derrogado o Código Civil”[7].
3. O Estatuto da Pessoa com
Deficiência
Resta, pois,
fixada a premissa de que o art. 12 da Convenção de Nova York, vigorando em todo
o território brasileiro com força de norma constitucional, explicitamente
reconstruiu o paradigma da capacidade, em uma perspectiva inclusiva e afinada
com o princípio da preservação da dignidade da pessoa humana.
Com isso, o
Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146, de 06 de julho de 2015) nada mais fez do que
dar aplicabilidade específica às normas internacionais.
E, por óbvio,
sob pena de manifesta inconstitucionalidade, não poderia, o Estatuto, ir de
encontro à Convenção.
Com a entrada
em vigor do Estatuto, vale salientar, a pessoa com deficiência não seria mais
tecnicamente considerada civilmente incapaz, na medida em que, respeitando a
diretriz da Convenção de Nova York, os arts. 6º e 84, do mesmo diploma legal,
deixam claro que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa:
Art. 6o A
deficiência não afeta a plena
capacidade civil da pessoa, inclusive[8] para:
I -
casar-se e constituir união estável;
II -
exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III -
exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a
informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV -
conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V -
exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI -
exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou
adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. (grifei)
Art. 84. A
pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições
com as demais pessoas. (grifei)
Esse último
dispositivo é de clareza solar: a pessoa com deficiência é legalmente capaz,
ainda que pessoalmente não exerça os direitos postos à sua disposição.
Poder-se-ia
afirmar, então, que o Estatuto inaugura um novo conceito de capacidade,
paralelo àquele previsto no art. 2º do Código Civil[9]?
Em meu
sentir, não há um novo conceito, voltado às pessoas com deficiência, paralelo
ao conceito geral do Código Civil.
Se assim o
fosse, haveria um viés discriminatório e inconstitucional.
Em verdade, o
conceito de capacidade civil foi reconstruído e ampliado.
4. A Brecha “Autofágica"
Com
a derrocada do conceito tradicional de capacidade, para contemplar a pessoa com
deficiência, dois artigos matriciais do Código Civil foram reestruturados pelo Estatuto.
Isso
porque, por imperativo lógico, as previsões de incapacidade civil derivadas da
deficiência deixaram de existir.
O
art. 3º do Código Civil, que dispõe sobre osabsolutamente incapazes, teve todos os
seus incisos revogados, mantendo-se, como única hipótese de incapacidade
absoluta, a do menor impúbere (menor de 16 anos).
O
art. 4º, por sua vez, que cuida da incapacidade
relativa, também sofreu modificação. No inciso I, permaneceu a previsão
dos menores púberes (entre 16 anos completos e 18 anos incompletos); o inciso
II, por sua vez, suprimiu a menção à deficiência mental, referindo, apenas, “os
ébrios habituais e os viciados em tóxico”; o inciso III, que albergava “o
excepcional sem desenvolvimento mental completo”, passou a tratar, apenas, das
pessoas que," por causa transitória ou permanente, não possam exprimir a
sua vontade "; por fim, permaneceu a previsão da incapacidade do pródigo.
Aqui
está o problema.
Não
há dúvida de que o legislador, ao deslocar, com pequena alteração redacional, a
previsão do antigo inc. III do art. 3º doCódigo Civil para o inc. III do art. 4º (pessoas
que, por causa transitória ou permanente, não possam exprimir a sua vontade),
cometeu um perceptível equívoco de localização.
Explico.
Primeiramente,
é até desnecessário observar que este inciso, mesmo na sistemática anterior,
não tratava de pessoas com deficiência, então contempladas no inciso II do art. 3º doCódigo Civil, mas, sim, das situações em que
determinada causa privasse o indivíduo de exprimir a sua vontade, como se dá na
hipnose ou no estado de coma derivado de um acidente de trânsito.
Por
óbvio, tais pessoas estão absolutamente impedidas de manifestar vontade, não
havendo sentido algum em considerá-las “relativamente incapazes”, como pretende
o inc.III do art. 4º do CC, alterado pelo Estatuto.
Menos
sentido ainda há - sob pena de inversão da lógica de todo o sistema inaugurado
- em se imaginar haver, nesta hipótese de incapacidade relativa, uma “brecha”
para que as pessoas com deficiência ainda fossem consideradas incapazes.
E
pior: uma brecha inconstitucional e autofágica, pois, além de ferir mortalmente
a Convenção de Nova York, teria o condão de desmantelar a pedra fundamental do
próprio Estatuto, que, com isso, destruiria a si mesmo.
O
cenário desenhado seria absurdo: desrespeitando-se flagrantemente o comando
constitucional do art. 12 da Convenção e, ainda, em rota de colisão com os
arts. 6º e 84 do Estatuto, as pessoas com deficiência, a despeito de contempladas
com um novo conceito de capacidade legal, caso não pudessem exprimir vontade,
seriam reputadas “relativamente incapazes”.
Surreal.
Houve,
sem duvida, um “erro topográfico”, na localização do texto do inc. III do art. 4º do Código Civil.
E
é papel do intérprete corrigi-lo, e não amplificá-lo.
Fica
o convite à reflexão.
REFERÊNCIAS DOUTRINÁRIAS E JURISPRUDENCIAL
1. FACHIN,
Luiz EDSON. Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 5357.
2. GAGLIANO,
Pablo Stolze. É o fim da interdição?. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 21, n. 4605, 9 fev. 2016. Disponível
em:. Acesso em: 13 ago. 2016.
3. LÔBO.
Paulo. Com Avanço Legal Pessoas com Deficiência Mental não são mais Incapazes.
Fonte:http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/processo-familiar-avancos-pessoas-deficiencia-mental-nao-são-incapazes.
4. SACCO,
RODOLFO. Antropologia Jurídica - Contribuição para uma Macro-História do
Direito. Martins Fontes: São Paulo, 2013.
5. SIMÃO,
José Fernando. ”Estatuto da Pessoa com Deficiência Causa Perplexidade - Parte
01". Fonte:http://www.conjur.com.br/2015-ago-06/jose-simao-estatuto-pessoa-deficiencia-causa-perplexidade.
6. TARTUCE,
Flávio. Alterações do Código Civil pela lei13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
Repercussões para o Direito de Família e Confrontações com o Novo CPC. Parte II. Fonte:http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI225871,51045-Alteracoes+do+Código+Civil+pela+lei+131462015+Estatuto+da+Pessoa+com.
[1] Até
porque, como bem observa RODOLFO SACCO, em sua respeitada “Antropologia
Jurídica - Contribuição para uma Macro-História do Direito”, “aquilo que é
novo”, por si só, "chama a atenção. Aquilo que está surgindo, aquilo que
está em formação (…) suscita a atenção, o quesito, a explicação, muito mais do
que aquilo que é estático” (Martins Fontes, São Paulo, 2013, pág. 248).
[2] GAGLIANO,
Pablo Stolze. É o fim da interdição?. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 21, n. 4605, 9 fev. 2016. Disponível
em:, acesso em 13 de agosto de 2016.
[3] O
talentoso José Fernando Simão tece interessantes considerações em"
Estatuto da Pessoa com Deficiência Causa Perplexidade - Parte 01 ". Fonte:http://www.conjur.com.br/2015-ago-06/jose-simao-estatuto-pessoa-deficiencia-causa-perplexidade,
acesso em: 13 de agosto 2016.
[4] Convenção
de Nova York: Artigo 12. Reconhecimento igual perante a lei 1. Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com
deficiência têm o direito de ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas
perante a lei. 2. Os Estados Partes reconhecerão que as pessoas com
deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais
pessoas em todos os aspectos da vida. 3. Os Estados Partes tomarão medidas
apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que
necessitarem no exercício de sua capacidade legal. 4. Os Estados Partes
assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal
incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em
conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas
salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade
legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam
isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais
e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto
possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão
judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais
ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa. 5. Os
Estados Partes, sujeitos ao disposto neste Artigo, tomarão todas as medidas
apropriadas e efetivas para assegurar às pessoas com deficiência o igual
direito de possuir ou herdar bens, de controlar as próprias finanças e de ter
igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito
financeiro, e assegurarão que as pessoas com deficiência não sejam
arbitrariamente destituídas de seus bens.
[5]"A
propósito, cabe lembrar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência regulamenta a
Convenção de Nova York, tratado de direitos humanos do qual o Brasil é
signatário, e que gera efeitos como emenda constitucional (art. 5º, § 3º, da CF/1988e Decreto 6.949/2009)” - TARTUCE, Flávio.
Alterações doCódigo Civil pela lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
Repercussões para o Direito de Família e Confrontações com o Novo CPC. Parte II. Disponível em:http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI225871,51045-Alteracoes+do+Código+Civil+pela+lei+...,
acessado em 13 de agosto de 2016.
[6] O
insuperável civilista LUIZ EDSON FACHIN, por ocasião do julgamento do pleito de
concessão de medida liminar na ADI 5357, afirmou que “a Convenção de
Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência concretiza o
princípio da igualdade como fundamento de uma sociedade democrática que
respeita da dignidade humana”.
[7] LÔBO.
Paulo. Com Avanço Legal Pessoas com Deficiência Mental não são mais Incapazes.
Fonte:http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/processo-familiar-avancos-pessoas-deficiencia-mental-nao-são-incapazes,
acessado em 13 de agosto de 2016.
[8] Note-se
que o emprego da expressão “inclusive"é proposital, para afastar qualquer
dúvida acerca da capacidade de pessoa com deficiência, até mesmo para a prática
dos atos mencionados nesses incisos.
[9] Art. 2o A
personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a
salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
* Juiz de
Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP, tendo obtido nota dez em todos os
créditos cursados, nota dez na dissertação, com louvor, e dispensa de todos os
créditos para o doutorado. Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e da
Academia Brasileira de Direito Civil. Professor da Universidade Federal da
Bahia e da Rede LFG.
Advogado e consultor em São Paulo. Doutor em
Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor
do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor dos cursos de
graduação e pós-graduação da EPD, sendo coordenador dos últimos. Professor da
Rede LFG. Autor da Editora...
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